2 de mar. de 2011

O insolúvel conflito entre religião e evangelho






Dias depois, entrou Jesus de novo em Cafarnaum, e logo correu que Ele estava na cidade. Muitos afluíram para o lugar onde Ele estava, tantos que nem mesmo junto à porta eles achavam lugar; e Jesus anunciava-lhes a Palavra. Alguns foram ter com Ele conduzindo um paralítico, levado por quatro homens. E, não podendo aproximar-se Dele, por causa da multidão, descobriram o telhado no ponto correspondente ao em que Ele estava e, fazendo uma abertura, baixaram o leito em que jazia o doente.

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Em que igreja alguém teria a liberdade de quebrar o telhado e baixar alguém para dentro do culto sem ser preso ou ter que indenizar a igreja por danos no telhado?

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Vendo-lhes a fé, Jesus disse ao paralítico: Filho, os teus pecados estão perdoados.

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Pode haver desejo mais puro, mais humano, mais divino e mais sublime, do que este desejo de que os pecados sejam perdoados? Qualquer interpretação maligna viria do fato que eles sabiam que Jesus não só falava sério, mas que o que Ele dizia era também verdade para quem ouvia.

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Mas alguns dos escribas estavam assentados ali e arrazoavam em seu coração: Por que fala ele deste modo? Isto é blasfêmia! Quem pode perdoar pecados, senão um, que é Deus?

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Somente almas adoecidas pelos ritos morais de doutrinas de pedra podem se infelicitar com a afirmação de que os pecados de um outro homem estão perdoados. Questionar tal realidade é questionar a essência do ensino de Jesus quanto ao fato que Ele mesmo ordenou que Seus discípulos perdoassem pecados, como Deus mesmo perdoa. O cerne do ensino de Jesus acerca de Deus em relação aos homens, e dos homens em relação uns aos outros, é que pecados são perdoados. Mas isto escandaliza a religião, posto que ela se julga a detentora do poder de dizer quando ou não Deus perdoou ou deve ter perdoado algum pecado.

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E Jesus, percebendo logo por seu espírito que eles assim arrazoavam, disse-lhes: Por que arrazoais sobre estas coisas em vosso coração? Qual é mais fácil? Dizer ao paralítico: Estão perdoados os teus pecados, ou dizer: Levanta-te, toma o teu leito e anda? Ora, para que saibais que o Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados— disse ao paralítico: Eu te mando: Levanta-te, toma o teu leito e vai para tua casa. Então, ele se levantou e, no mesmo instante, tomando o leito, retirou-se à vista de todos, a ponto de se admirarem todos e darem glória a Deus, dizendo: Jamais vimos coisa assim!

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O Filho do Homem tem sobre a terra autoridade para perdoar pecados! A ironia é que os homens crêem muito mais que paralíticos podem ser curados do que pecados podem ser perdoados. Aceitar que o Filho do Homem tem autoridade para perdoar pecados, e, aceitar que os pecados estão perdoados, os nossos ou os dos outros, é que é um grande desafio para a alma. Por isso todos crêem em ‘milagres’, mas poucos crêem em perdão; no seu próprio e no concedido e recebido por outros.

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De novo, saiu Jesus para junto do mar, e toda a multidão vinha ao seu encontro, e Ele os ensinava. Quando ia passando, viu a Levi, filho de Alfeu, sentado na coletoria e disse-lhe: Segue-me! Ele se levantou e o seguiu.

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Procurar a Levi no escritório, no lugar das cobranças de impostos, o qual estava lotado de devedores, os quais bem conheciam quem era Levi, ou Mateus, era algo profundamente provocativo em todas as perspectivas. Mas Jesus escolhe o homem mal visto para ver o bem.

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Achando-se Jesus à mesa na casa de Levi, estavam juntamente com Ele e com Seus discípulos muitos publicanos e pecadores; porque estes eram em grande número e também o seguiam.

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O fato de Mateus ter sido convidado e aceito andar com Jesus, certamente criou no coração de todos os cobradores de impostos [publicanos] e de todos os demais indivíduos que se sentiam marginalizados pela religião e suas leis e morais [os pecadores], bastante confiança diante de Jesus. Ele não julgava as pessoas e nem se deixava seqüestrar por estereótipos. Por isso os homens normais confiavam Nele.

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Os escribas dos fariseus, vendo-o comer em companhia dos pecadores e publicanos, perguntavam aos discípulos Dele: Por que come e bebe ele com os publicanos e pecadores?

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Comer e beber sempre foram gestos de amizade e companheirismos. A palavra companheiro significa ‘aquele que divide o pão’—com-pan... Mas nos dias de Jesus aquele ato e com aquelas pessoas evocava uma união e uma identidade que assustava a casta dos religiosos, com suas Morais Separatistas, com seus Apartheides e com seus Campos de Separação dos demais homens. Assim, comer com publicanos e pecadores—coisa simples e normal, comum, sadia, e própria da vida—, se torna algo imenso, descomunal, carnal, impróprio, impuro, sacrílego, blasfemo. A alma que se torna moral nos sentido julgador da palavra tem em si o poder de chamar à existência as coisas que não existem. Neste caso, neste texto, nada estava acontecendo. Jesus estava apenas comendo com outros seres humanos. Mas a religião não reconhece humanidade senão nos que são clonados por ela.

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Tendo Jesus ouvido isto, respondeu-lhes: Os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; não vim chamar justos, e sim pecadores.

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Jesus veio para todo aquele que diz: “Miserável homem sou!”; ou para quem diz: “Sou o maior dos pecadores”; ou até para quem diz como Friedrich Nietzsche: “Se realmente existe um Deus vivo, sou o mais miserável dos homens.” Os fariseus ouvem Nietzsche, e dizem: “Vejam! Ele próprio se condena!” Jesus, porém, pode ouvir de outra maneira, de tal modo que até o que a religião ouve como blasfêmia, pode, para Jesus, ser apenas confissão de necessidade. Mas os fariseus não podem se igualar desta forma aos homens. Eles podem até se dizer doentes. Porém, sempre dirão que ‘eram’ doentes, ‘antes’ de conhecerem a sua religião de agora. Mas jamais se colocarão em igualdade com os doentes crônicos, e que se internam para o resto da vida aos pés de Jesus.

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Ora, os discípulos de João e os fariseus estavam jejuando. Vieram alguns e lhe perguntaram: Por que motivo jejuam os discípulos de João e os dos fariseus, mas os teus discípulos não jejuam?

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Ninguém perdia a chance de tentar enquadrar a Jesus. Ele tinha que ceder. Alguma concessão à idiotice Ele teria que fazer. Sim, Ele precisa transigir, como fazem todos os seres que guardam alguma forma de interesse nas importâncias deste mundo. Por isso, talvez animados pelo fato de que Jesus demonstrava respeitar e amar João Batista, alguns fariseus ousaram tentar pegar Jesus em alguma forma de cooptação. Se Ele desse um dia para que tal coisa acontecesse, ou se aceitasse que se instituísse O Dia do Jejum de Jesus, na mesma hora tudo o que Ele ensinava viraria religião, e perderia o poder subversivo do Reino de Deus.

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Respondeu-lhes Jesus: Podem, porventura, jejuar os convidados para o casamento, enquanto o noivo está com eles? Durante o tempo em que estiver presente o noivo, não podem jejuar. Dias virão, contudo, em que lhes será tirado o noivo; e, nesse tempo, jejuarão. Ninguém costura remendo de pano novo em veste velha; porque o remendo novo tira parte da veste velha, e fica maior a rotura. Ninguém põe vinho novo em odres velhos; do contrário, o vinho romperá os odres; e tanto se perde o vinho como os odres. Mas põe-se vinho novo em odres novos.

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Jesus lhes diz que ser Seu discípulo é discernir e possuir senso de propriedade. Não se faz jejum em dia de festa. No entanto, Jesus vai mais além, e os provoca evocando uma imagem de Festa, de Bodas do Noivo, de algo que tinha suas raízes no chão da maior alegria humana—o casamento—, mas que também remetia para a imagem e o arquétipo de uma Boda Escatológica. Ele diz que há algo Do Outro Mundo acontecendo entre eles, enquanto eles pensam em jejuar. Jesus diz que quem fosse Seu discípulo, então, que entrasse naquela festa de publicanos e pecadores, pois, era ali que estava o Reino de Deus; posto que onde quer que Jesus seja bem-vindo, aí o Reino faz pouso. No entanto, Ele prossegue também denunciando a impossibilidade de que aquela ‘nova’ maneira de ver a vida pudesse ser aceita por ‘olhos antigos’. Ele diz que não tentará fazer tal implante de consciência. Na realidade, Ele diz que seria e ficaria ainda pior. Ele sabe que certas consciências se cristalizam em certos estados, e começam a perder o viço da vida. Aceitar a vida no Reino e seu espírito de Bodas é inaceitável para aqueles que vivam do luto. Aquelas pesadas estruturas de tradição jamais aceitariam o Evangelho do reino. Assim, Ele também indica que o novo estava no mundo, entre publicanos e pecadores, nas esquinas, nas vielas, nas ruas, nas festas, nos caminhos, e nas veredas todas desta existência, onde houver alguém querendo. Jesus também ensinava que nem mesmo perder tempo quebrando paradigmas Ele perderia. Ele diz que põe novo no novo e não insiste em meter o novo no velho. É grande o estrago... Com isto Ele diz que estruturas mentais que se tornam coletivas e engessadas, são como algo que envelhece como pano ou saco de couro de odres de vinho. Para Ele elas deveriam acabar por si mesmas. Mas não há aqui uma fixação de nenhum estado de inconversibilidade. Qualquer individuo pode mudar. Mas o espírito de um tempo não se converte.

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Ora, aconteceu atravessar Jesus, em dia de sábado, as searas, e os discípulos, ao passarem, colhiam espigas. Advertiram-no os fariseus: Vê! Por que fazem o que não é lícito aos sábados?

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Agora a questão é o dia do Descanso Obrigatório, o Sábado, pois é isto aquilo no que ele se tornara. Era lícito segundo a Lei de Moises que as espigas das esquinas fossem deixadas aos pobres e necessitados, para que não houvesse fome na terra, mesmo que alguém não tivesse uma propriedade. A questão, no entanto, é se no Sábado isto poderia ser feito. Essa era a preocupação da religião, sempre aflita pelas causas importantes (rsrsrs), e sempre disposta a defender Deus das irreverências dos homens. Parecia que Deus não teria descanso se tudo não parasse na Terra. O homem teria que morrer de fome por amor a Deus nas beiradas dos campos de cheios de espigas de vida. O Deus da religião é do tamanho da mediocridade e da mesquinhez dos fariseus.

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Mas ele lhes respondeu: Nunca lestes o que fez Davi, quando se viu em necessidade e teve fome, ele e os seus companheiros? Como entrou na Casa de Deus, no tempo do sumo sacerdote Abiatar, e comeu os pães da proposição, os quais não é lícito comer, senão aos sacerdotes, e deu também aos que estavam com ele?

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Jesus então escracha. Literalmente. Afinal, eles falavam de algo que existia em campo aberto e que poderia ser licito ou não dependendo do dia—no caso, o Sábado—; mas Jesus vai além, e coloca logo um questão—perguntando se nunca haviam lido acerca do assunto—que está muito mais para além de todas as expectativas. Ele diz que Davi comeu o pão sagrado, e comeu daquilo que era proibido comer em qualquer dia, e por qualquer pessoa que não fosse o sacerdote, e, ainda assim, conforme o rito..., e não pecou por isso. Assim, Jesus diz que a necessidade é maior do que qualquer lei da religião, e que o sagrado se faz santificado pela necessidade que é essencial à vida. Além disso, Ele declara o sacerdócio de Céu Aberto que Ele inaugurava, no qual todos os homens poderiam ganhar a consciência livre para saber a diferença entre o atender a uma necessidade básica da vida, e uma transgressão.

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E acrescentou: O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado; de sorte que o Filho do Homem é senhor também do sábado.

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Jesus se identifica com os humanos ao dizer que o Sábado foi feito para o homem, e não o contrário; para então concluir que sendo Ele humano, e, entre os humanos, o Filho do Homem; tanto pela Sua humanidade, quanto também pela Soberania do Significado dela, Ele era o Senhor do Sábado. Todavia, o tom no qual Ele se apresenta como o Filho do Homem é de Senhor do Sábado, o que equivale a Senhor da Criação. Aquele que diz quando é a hora do descanso. Para os ouvidos puristas e doentes de religiosidade dogmática e tradicional como os dos fariseus, aquela declaração era como alfinete nas nádegas da alma religiosa. Simplesmente não dava para ser menos explicito. Quem falava era o Senhor Homem.

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De novo, entrou Jesus na sinagoga e estava ali um homem que tinha ressequida uma das mãos. E estavam observando a Jesus para ver se o curaria em dia de sábado, a fim de o acusarem. E disse Jesus ao homem da mão ressequida: Vem para o meio! Então, lhes perguntou: É lícito nos sábados fazer o bem ou fazer o mal? Salvar a vida ou tirá-la? Mas eles ficaram em silêncio.

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Tudo começou com Jesus sendo provocado acerca de Sua amizade com pecadores. Depois Ele deu respostas. Agora Ele mesmo toma a iniciativa da provocação. Entra na Sinagoga e provoca. Põe um problema. E mais do que isto: Ele assume que para a mente religiosa fazer o que Ele faria seria uma “transgressão”, e faz assim mesmo. E faz tudo se explicar pelas razões de um coração paterno.

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Olhando-os ao redor, indignado e condoído com a dureza do seu coração, disse ao homem: Estende a mão. Estendeu-a, e a mão lhe foi restaurada. Retirando-se os fariseus, conspiravam logo com os herodianos, contra ele, em como lhe tirariam a vida. Retirou-se Jesus com os seus discípulos para os lados do mar. Seguia-o da Galileia uma grande multidão. Também da Judéia, de Jerusalém, da Iduméia, dalém do Jordão e dos arredores de Tiro e de Sidom uma grande multidão, sabendo quantas coisas Jesus fazia, veio ter com ele.

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Ao fim desse intenso encontro as motivações ficam estabelecidas. A religião precisa matar Aquele que a desestabiliza tão radicalmente, tirando de suas mãos o poder e o controle. Já o caminho do Reino segue para o ar livre, não para os conluios da morte e nem para a conspiração dos mesquinhos e empedernidos de justiça própria, mas sim para as gentes, para todas as pessoas, abrindo-se em todas as direções, suscitando desejo por Deus em corações muito diferentes entre si. Todos, porém, abertos para Jesus. Esta é apenas uma página do Evangelho Segundo Marcos, mas poderia ser muito bem o resumo histórico acerca de como a Religião trata o Evangelho.

Nele, que é maior que todas as religiões e não cabe em nenhuma delas.

Rev. Caio Fábio